segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Não sou um robô



Há algumas semanas, eu estava no quadro ensinando porcentagem. A mesma porcentagem que ensino há vinte e sete anos, aquela velha companheira que entra na sala comigo e, se pudesse, me chamaria pelo nome. Eu seguia meu roteiro habitual, segura, quase no piloto automático. Os alunos, do outro lado, com aquele clássico ponto de interrogação estampado no rosto de quem não entende por que um dia vai precisar daquilo. Tudo dentro do normal.

Até que, no meio da explicação, minha cabeça fez um barulho de rachadura, como se algo tivesse trincado por dentro. A lógica simplesmente desapareceu. A conta sumiu. Meu cérebro ficou tão branco que dava para projetar um filme nele. Fiquei parada, olhando para o quadro, enquanto a porcentagem me encarava de volta com um certo deboche. E, pela primeira vez em quase três décadas, quem estava com cara de interrogação era eu.

Enquanto eu tentava desesperadamente puxar da memória qualquer traço de raciocínio, surge a aluna brilhante, aquela que sempre quer aparecer, sempre sabe de tudo, sempre está pronta para brilhar. Pegou a caneta, fez a conta na lousa e explicou tudo para a turma com elegância. Eu, imóvel, observava a cena como quem olha para uma obra de arte abstrata: admirando.

A aula seguiu, a vida seguiu, mas eu não. Por dentro, ficou um eco incômodo: o que está acontecendo comigo?

Voltei para casa com a sensação de ter presenciado minha própria falha de sistema. Poderia dizer que comecei a imaginar diagnósticos, causas ocultas, possibilidades sombrias. Mas a verdade é bem menos dramática e muito mais cruel: meu cérebro simplesmente cansou. Parou de pensar. Nem teve energia para se preocupar com o que tinha acontecido. A verdade é que o cérebro também tem limite, mesmo quando a gente insiste em tratá-lo como se fosse planilha de Excel com memória infinita. Situações de apagão mental são comuns quando há estresse constante, excesso de demandas e aquele combo clássico de quem leciona: pouco sono, muita cobrança e zero pausa real. Meu sistema interno entrou no modo de emergência que os computadores usam quando esquentam demais, com funções indisponíveis até segunda ordem.

No dia seguinte, veio o pensamento fatal: eu não sou um robô. Mas, se fosse, tudo seria tão simples. Chamava o técnico, abria a tampa, trocava a peça. Talvez atualizasse o sistema, apertasse reset e pronto: Fernanda 2.0, sem bugs, sem travamentos, com bateria cheia.

Só que nem robô funciona desse jeito. Até máquina precisa desligar para não queimar. Até máquina trava. Até máquina depende de manutenção preventiva, atualização e descanso. Agora imagina o absurdo: um professor humano, de carne, osso e sentimentos, tentando operar o ano letivo inteiro sem pausa, sem manutenção emocional, sem recarga. Nem o melhor processador inventado aguentaria corrigir provas, planejar aula, lidar com trinta humores por dia e ainda sorrir enquanto explica porcentagem.

No fundo, a cena toda foi tragicômica. Por fora, dá até para rir: a professora experiente, congelada na lousa, salva pela aluna brilhante. Por dentro, a sensação era de pânico. “Será que isso é o começo do fim?”

Mas a conclusão mais honesta é simples: não, eu não sou um robô e ainda bem. Justamente porque sou humana, eu canso, falho, travo, sinto medo… e também rio de mim mesma, me reinvento, peço ajuda, deixo a aluna brilhante brilhar e, de quebra, transformo esse bug em crônica. Se até robô precisa de manutenção, eu mereço, no mínimo, descanso, cuidado, colo, consulta técnica com direito a bolo e chá, terapia e um feriado interno.

A conta de porcentagem não foi o problema. Foi o sintoma. Uma placa luminosa piscando: sua bateria está fraca, conecte o carregador. E carregador, no meu caso, não é tomada, é descanso real, limites, autocuidado e a coragem de admitir, com humor e um pouquinho de desespero, que meu corpo não é máquina… e que é exatamente isso que me torna profundamente humana.


Lágrimas regando milagres

Fer

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