sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Depressão Reativa, Osmose e Outros Milagres da Psiquiatria Moderna

 


Entrei no consultório cansada. Não aquele cansaço de Garfield, do tipo “ai, que preguiça de segunda”, mas um cansaço de quem parece ter carregado um trem de obrigações e humilhações nos ombros desde 1999. Sentei, e o doutor perguntou como eu estava. Eu disse: “Não estou bem.” Simples, direto, adulto. Mas, aparentemente essa não era a resposta que o psiquiatra estava preparado para ouvir.

Ele pegou meu relatório neuropsicológico, mas não abriu. Disse que, se eu tinha TEA ou TDAH, não era a área dele, enquanto segurava o laudo como um panfleto de pizzaria entregue no semáforo, virando de um lado, virando do outro, mas sem demonstrar o menor interesse em, de fato, ler o conteúdo.

Foi aí que percebi que eu estava diante de um adepto da Psiquiatria por Osmose: esse método inovador, aprovado em… sei lá onde, no qual basta aproximar o laudo da aura do médico para que o conteúdo atravesse o envelope, as camadas atmosféricas, o ego do doutor e, por mágica, atualize o diagnóstico sem necessidade de leitura. Parece ficção científica, mas não: é só uma quinta-feira qualquer.

Sem abrir absolutamente nada, ele decreta que eu tenho depressão reativa. Reativa a quê? Segundo ele: problemas. Meu diagnóstico psiquiátrico, portanto, reduz-se ao conceito de que “você é sensível à vida”. Meu corpo reage à existência como quem reage a camarão vencido: uma alergia emocional, um choque anafilático de responsabilidades, um inchaço metafísico de demandas acumuladas.

E ele continua, como se tivesse recebido informações por telepatia: diz que eu não faço terapia, não faço atividade física e não sigo orientações. A prova? Um caderninho secreto onde, aparentemente, minha vida inteira foi resumida em três parágrafos escritos com a pressa de quem tem uma fila de consultas e zero vontade de empatia.

Tento explicar que fiz terapia de janeiro a agosto e que, quando voltei a trabalhar, perdi o horário por incompatibilidade, que busquei outras opções e que começarei com uma nova psicóloga na semana seguinte. Ele me corta com a elegância de uma serra elétrica: “Você sempre vem com desculpas.” Claro, porque explicar a própria realidade se chama desculpa; talvez eu devesse ter respondido com emojis ou sinais de fumaça, para facilitar a comunicação.

Chegamos então ao momento mais poético da consulta: a comparação financeira. Segundo ele, tudo o que gastei em remédio poderia ter virado poupança, bastava ter tido mais força de vontade ao invés de querer resolver problemas com medicação. Respirei fundo. Venlafaxina? Placebo, segundo o doutor. O efeito é psicológico. Mas “ser resiliente”, isso sim, é farmacologia pura. Saí do consultório com a seguinte receita:

1 cápsula de “aguente firme” pela manhã,

1 comprimido de “pare de frescura” após o almoço,

30 gotas de “a vida é assim mesmo” antes de dormir.

Reações adversas: culpa, vergonha, vontade de sumir, sensação de fracasso, choro contido e aumento súbito do desejo de trocar de médico.

Escuto tudo em silêncio, não porque concordo, mas porque descobrir que um profissional minimiza sua dor dá uma preguiça tão profunda de responder que a gente simplesmente deixa a cena terminar. Saí pior do que entrei, mas ainda assim saí.

E do lado de fora encontrei o que me faltou lá dentro: acolhimento, humanidade, lógica, realidade concreta. Descobri que a psiquiatria não é aquilo, que dor não é falta de resiliência, que sofrimento não se cura com sermão, que a vida desmonta pessoas e elas têm direito de pedir ajuda sem levar bronca.

E descobri algo ainda mais importante: resiliência não é suportar o insuportável; resiliência é levantar a cabeça, respirar fundo e pensar: “Chega. Eu mereço cuidado, não condenação.”


Lágrimas regando milagres

Fer


segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Não sou um robô



Há algumas semanas, eu estava no quadro ensinando porcentagem. A mesma porcentagem que ensino há vinte e sete anos, aquela velha companheira que entra na sala comigo e, se pudesse, me chamaria pelo nome. Eu seguia meu roteiro habitual, segura, quase no piloto automático. Os alunos, do outro lado, com aquele clássico ponto de interrogação estampado no rosto de quem não entende por que um dia vai precisar daquilo. Tudo dentro do normal.

Até que, no meio da explicação, minha cabeça fez um barulho de rachadura, como se algo tivesse trincado por dentro. A lógica simplesmente desapareceu. A conta sumiu. Meu cérebro ficou tão branco que dava para projetar um filme nele. Fiquei parada, olhando para o quadro, enquanto a porcentagem me encarava de volta com um certo deboche. E, pela primeira vez em quase três décadas, quem estava com cara de interrogação era eu.

Enquanto eu tentava desesperadamente puxar da memória qualquer traço de raciocínio, surge a aluna brilhante, aquela que sempre quer aparecer, sempre sabe de tudo, sempre está pronta para brilhar. Pegou a caneta, fez a conta na lousa e explicou tudo para a turma com elegância. Eu, imóvel, observava a cena como quem olha para uma obra de arte abstrata: admirando.

A aula seguiu, a vida seguiu, mas eu não. Por dentro, ficou um eco incômodo: o que está acontecendo comigo?

Voltei para casa com a sensação de ter presenciado minha própria falha de sistema. Poderia dizer que comecei a imaginar diagnósticos, causas ocultas, possibilidades sombrias. Mas a verdade é bem menos dramática e muito mais cruel: meu cérebro simplesmente cansou. Parou de pensar. Nem teve energia para se preocupar com o que tinha acontecido. A verdade é que o cérebro também tem limite, mesmo quando a gente insiste em tratá-lo como se fosse planilha de Excel com memória infinita. Situações de apagão mental são comuns quando há estresse constante, excesso de demandas e aquele combo clássico de quem leciona: pouco sono, muita cobrança e zero pausa real. Meu sistema interno entrou no modo de emergência que os computadores usam quando esquentam demais, com funções indisponíveis até segunda ordem.

No dia seguinte, veio o pensamento fatal: eu não sou um robô. Mas, se fosse, tudo seria tão simples. Chamava o técnico, abria a tampa, trocava a peça. Talvez atualizasse o sistema, apertasse reset e pronto: Fernanda 2.0, sem bugs, sem travamentos, com bateria cheia.

Só que nem robô funciona desse jeito. Até máquina precisa desligar para não queimar. Até máquina trava. Até máquina depende de manutenção preventiva, atualização e descanso. Agora imagina o absurdo: um professor humano, de carne, osso e sentimentos, tentando operar o ano letivo inteiro sem pausa, sem manutenção emocional, sem recarga. Nem o melhor processador inventado aguentaria corrigir provas, planejar aula, lidar com trinta humores por dia e ainda sorrir enquanto explica porcentagem.

No fundo, a cena toda foi tragicômica. Por fora, dá até para rir: a professora experiente, congelada na lousa, salva pela aluna brilhante. Por dentro, a sensação era de pânico. “Será que isso é o começo do fim?”

Mas a conclusão mais honesta é simples: não, eu não sou um robô e ainda bem. Justamente porque sou humana, eu canso, falho, travo, sinto medo… e também rio de mim mesma, me reinvento, peço ajuda, deixo a aluna brilhante brilhar e, de quebra, transformo esse bug em crônica. Se até robô precisa de manutenção, eu mereço, no mínimo, descanso, cuidado, colo, consulta técnica com direito a bolo e chá, terapia e um feriado interno.

A conta de porcentagem não foi o problema. Foi o sintoma. Uma placa luminosa piscando: sua bateria está fraca, conecte o carregador. E carregador, no meu caso, não é tomada, é descanso real, limites, autocuidado e a coragem de admitir, com humor e um pouquinho de desespero, que meu corpo não é máquina… e que é exatamente isso que me torna profundamente humana.


Lágrimas regando milagres

Fer